25 setembro 2017

na noite das eleições


Assisti aos resultados das eleições na Representação de Baden-Württemberg (uma espécie de embaixada dessa Land aqui na capital da Federação). Cheguei pouco antes das seis da tarde, hora da abertura das urnas, e fiquei retida numa enorme fila de convidados. O Joachim já estava lá dentro, e telefonou-me a dizer os primeiros resultados. "Nem queiras saber a tragédia, o pessoal aqui dentro está todo com cara de enterro. 13% para a AfD!"

Comentei os resultados com as pessoas que esperavam na fila à minha volta. Desolação geral.

- Foi um erro ter dado tanto palco à AfD, disse uma senhora. Foi uma self-fulfilling prophecy.
- O que me deixa indignada - disse eu - foi terem deixado um partido destes ir a eleições.
- Bom, isso está na Constituição: se tiverem mais de 5% dos votos entram no Parlamento.
- Também está na Constituição - retorqui - que todas as pessoas são iguais. A AfD quer criar cidadãos de segunda classe, o que é anticonstitucional.
- Oh, isso é apenas para os refugiados...

Ali estava eu, no meio de pessoas cultas e bem vestidas, convidadas a dedo para uma recepção na Representação de Baden-Württemberg, e estavam-me a dizer que os refugiados podem ser tratados como pessoas de segunda classe - sem sequer se darem conta do que tinham dito. A conversa continuou a ser orientada por elevados valores democráticos:

- Penso que a partir do momento em que um partido mostra que não respeita valores constitucionais básicos, não deve poder concorrer às eleições - disse eu. Tanto uma AfD na Alemanha, como um Trump nos EUA. 
- Proibir?! Onde vamos parar?! A Democracia tem de saber gerir estes fenómenos, e mostrar que é suficientemente forte para os anular, mas de forma democrática. A AfD entrou no Parlamento, e agora vai mostrar ao que vem. Isso vai abrir os olhos aos seus eleitores, que nas próximas eleições já estarão avisados.
- Educação, educação!, disse outra senhora (a que tinha dito "isso é apenas para os refugiados"). Só se consegue fortalecer a Democracia educando e informando o povo.

Ainda considerei dar-me ao trabalho de a informar que a AfD tem propostas muito concretas para os imigrantes turcos (não "apenas para os refugiados"), e que me sinto pessoalmente ofendida e ameaçada sempre que ouço alguém da AfD falar de "miscigenação" e da "substituição da população", porque estão a falar dos meus filhos. Mas preferi desistir. Pareceu-me que aquelas pessoas tão bem postas e autoconfiantes não estavam em condições de se deixarem interpelar por uma estrangeira. Facto é que entre os eleitores da AfD se encontram também muitas pessoas com formação superior, e da classe média alta. E mesmo quem não vota AfD e tem um elevado nível de formação pode cair inadvertidamente nos esquemas ideológicos da extrema-direita.  

Pouco depois, sentados a uma mesa em frente junto à sala onde decorria a transmissão em directo da Representação para a televisão de Baden-Württemberg, o Joachim comentava com os vizinhos que era muito mais suportável assistir a este momento na companhia de tantas pessoas, em vez da solidão do sofá da nossa casa, e todos concordaram.

O público agitou-se novamente quando apareceram os gráficos das movimentações de uns partidos para os outros: um milhão da CDU para a AfD, caramba! E uma corrida em massa dos absentistas às urnas para votar AfD, caramba!

Daqueles números, o que mais me surpreendeu e chocou foi o do êxito da AfD nos dois Estados mais ricos da Alemanha: Baviera e Baden-Württemberg. Entendo, até certo ponto, que a AfD conquiste mais votos na região da antiga RDA, devido ao ressentimento em relação ao processo de reunificação, à insegurança e à ausência de perspectivas, e ao despeito ou à inveja em relação ao que possa parecer um tratamento privilegiado dos refugiados, e devido também às sequelas provocadas por cinquenta anos de partido único. Mas os Estados mais ricos da Alemanha, com um nível de vida invejável, com segurança, com taxas de desemprego mínimas: contra o quê protestam eles? que lhes falta? 

A passagem de tantos votos do CSU (conservadores bávaros) para a AfD esclareceu-me sobre a deriva populista dos seus chefes nos últimos anos: estavam a tentar não perder eleitores para a AfD. As recusas de Angela Merkel em embarcar nessa deriva populista - que apontava os refugiados quase como um inimigo a combater - tiveram também o seu preço, expresso nos baixos resultados do seu partido, quase os mais baixos de sempre.

Na nossa mesa as opiniões eram unânimes: o deslocamento da CDU para a esquerda e do SPD para a direita fez-lhes perder eleitores. É preciso vir agora uma coligação Jamaica (CDU, Verdes e Liberais) para agitar as águas políticas e desinstalar a CDU do seu conforto e da sua dormência. O SPD tem de ficar fora do governo, para ser a maior força da oposição. E nem pensar em deixar que a AfD seja a maior força da oposição no Parlamento!

Foi muito aplaudida a representante do SPD que falou num momento histórico em que os partidos democráticos têm de compreender a gravidade da situação e ser capazes de se entenderem para travar o avanço da extrema-direita.

Assim seja.

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Na Representação havia uma exposição trabalhos de Patricia Waller. Reparei especialmente na avestruz de cabeça enfiada na areia, e na ovelha tosquiada. Vá-se lá saber porquê...


3 comentários:

manuel rocha disse...

Na região de Odemira estão instaladas várias multinacionais hortícolas cuja mão de obra , quase exclusivamente de origem asiática, aceita salários e condições de trabalho e de vida que há muito deixaram de ser aceitáveis para os locais. Em consequência, o proletariado local que resta, maioritariamente desempregado, constituído por gente que tradicionalmente tinha fortes simpatias comunistas, tem vindo a alimentar um ressentimento difuso que gera um caldo de cultura propicio à instalação das narrativas típicas da extrema direita. E enquanto isto sucede o que fazem as esquerdas ? Discutem a magna questão de determinar em que idade pode um alegado transexual mudar de nome. Perante cenários deste tipo só me espanta que ainda haja quem se espante com resultados como os que a HA comenta.

Helena Araújo disse...

Manuel Rocha, a sério que acredita que a Esquerda em Portugal só se preocupa com a idade para um transexual mudar de nome? A sério?
E porquê "alegado"?

Manuel Rocha disse...

Cara Helena Araújo,

Como é evidente, ambos sabemos que a esquerda portuguesa não se preocupa apenas com as questões da identidade ou de género. Mas uma coisa é aquilo que sabemos; outra, bem distinta, é o campo concreto da acção politica e em particular o que dele transparece para a esfera pública, e nomeadamente para as faixas do eleitorado mais atingidas pelos efeitos negativos do ordoliberalismo instalado.
Na campanha eleitoral que decorre neste momento em Odemira, p.e., não vejo nenhuma força de esquerda que se atreva a discutir a magna questão que referi no primeiro comentário, quando é público o mal estar existente ( as empresas locais não contratam pessoas; contratam serviços a empresas especializadas no fornecimento de mão de obra temporária...).
Quanto aos média ( alinhados que estão com a ordem instalada ), isto é "normal", e logo uma não-noticia.
Portanto, como estranhar que estas pessoas possam dar o seu voto a quem produza um discurso que dê "sentido" aos seu descontentamento ?

PS. Deixe lá cair o "alegado", ou ainda deixamos a discussão resvalar para o síndroma que critico. :)